Do luto à luta em "Ainda estou aqui"
- Jesse Cardoso
- 26 de mar.
- 7 min de leitura
Atualizado: 30 de mar.

Ainda estou aqui é um filme brasileiro dirigido por Walter Salles e atuado por artistas como Fernanda Torres, Fernanda Montenegro e Selton Mello. O filme é inspirado no livro de Marcelo Paiva (filho de Rubens e Eunice Paiva) com o mesmo nome da produção cinematográfica, publicado em 2015. Reconhecido internacionalmente pela sua qualidade audiovisual e temática relevante relacionada à ditadura militar (1964-1985), Ainda Estou Aqui tem gerado debates sobre esse período histórico brasileiro e o quanto ainda há resquícios dele no contemporâneo. Entre diversos prêmios, ganhou o de melhor filme internacional no Oscar de 2025. Foi a primeira vez que um filme brasileiro ganha essa premiação, então, ele proporcionou um grande prestígio para o cinema nacional.
Ainda estou aqui conta uma narrativa relacionada ao efeito da perseguição da ditadura militar a pessoas que se opunham ao regime estabelecido na época. Ele traz uma história relacionada a uma família que tem o pai, a mãe e uma filha sequestrados pelo exército brasileiro, tendo o pai não voltado após essa intervenção. Mesmo focando na família de Rubens Paiva, é um filme que ganha eco em muitas outras histórias, se tornando político e coletivo ao denunciar os abusos desse regime. A popularidade que gerou essa história no livro e no cinema é um bom indicador para fazer a sociedade brasileira refletir sobre o passado, de como o passado se repete no presente e, se não cuidarmos, de como o passado pode vir a determinar o futuro. Daí o slogan Ditadura Nunca Mais!
Ainda Estou Aqui trabalha a questão do luto, num contexto de ditadura militar brasileira, pela morte e desaparecimento de Rubens Paiva. Um tipo de tortura que se apresenta no filme é a do imperativo do silêncio. Os militares criam um terror psicológico ao esconderem o que fizeram com Rubens; junto com a prisão de Eunice e de sua filha aumenta a pressão sobre não poder falar a respeito do ocorrido. Como chorar o luto sem a certeza da morte? Esta é uma história real de um fantasma que deixaram na família, o fantasma da incerteza do destino do esposo e pai de cinco filhos. Eunice teve que se desdobrar para conseguir sustentar a todos. Mas ela não se deixou vencer pela tristeza inerente a essa vivência de perda. Usou a raiva contra um sistema social violento e cruel e dedicou as suas energias para estudar, aprimorar-se na sua profissão e ajudar os que precisassem para lutar contra injustiças sociais, como é o caso dos povos originários. Dentro dos papéis de gênero da época, Eunice ocupava a posição de cuidar da família e do lar, enquanto o seu esposo era responsável por prover os recursos financeiros a partir do trabalho fora de casa. Com o seu falecimento houve também um desamparo no aspecto econômico, algo que influenciou Eunice a reinventar onde seriam os focos da sua energia. "É preciso dar um jeito meu amigo. Descansar não adianta, quando a gente se levanta, quanta coisa aconteceu." Essa música de Erasmo Carlos virou um mantra do filme, do quanto a desacomodação move, do quanto Eunice teve que dar um jeito para, ao mesmo tempo, suportar a grande dor da perda do marido e reinventar a sua existência após essa ausência, mudando sua postura na vida e na dinâmica familiar.
Ainda estou aqui gera várias questões. Com quantas ações se faz uma luta? Com quantas lutas se faz um luto? O que se perde de si na ausência do outro? Quais são os lutos possíveis e quais são os impossíveis? Vida e morte andam juntas. Freud (2010) nos fala que no luto o mundo se torna pobre e vazio. O luto é um afeto que demanda a subjetivação de uma perda, demanda a reconstrução de si a partir do buraco interno gerado pela separação e pela não possibilidade de encontrar o outro novamente nesta vida. Um luto realizado num contexto de ditadura militar e por responsabilidade do Estado é um luto que tem o seu espaço de elaboração diminuído. O Estado é a instituição que ordena e regula a sociedade, é a fonte de autoridade e legitimação do poder e da violência. Quando ele comete um crime, como foi no caso da época da ditadura militar, pode gerar nos familiares um trauma que torna mais difícil a elaboração dos lutos. Christian Dunker (2023) traz que na perspectiva lacaniana o luto é um processo partilhado intersubjetivamente, está relacionado a várias pessoas que eram próximas a quem faleceu e que passam por esse momento por meio de ritos e rituais culturais para vivenciar a perda. O trauma é uma ferida narcísica que dificulta a elaboração do luto porque não cessa de se inscrever, algo que pode gerar um luto "infinito": "São casos marcados por lutos pendentes, às vezes de gerações anteriores, outras vezes sobrecarregados pela insistência do abandono ou dos maus-tratos na infância, nas migrações ou emigrações violentas, na violência ou pela imposição de silêncio ou censura sobre a perda." (DUNKER, 2023, p. 29).

Ainda estou aqui é palco para uma força espetacular encarnada no sorriso de Eunice Paiva, o qual mostra a grandeza de uma mulher perante uma política de Estado que tentou entristecê-la e silenciá-la. Dentro dessa história Fernanda Torres fez uma belíssima atuação encarnando e transmitindo esse sorriso de resistência aos mal humorados que detiveram o poder de instituir o horror. Atualmente temos generais sendo indiciados por planejar um golpe envolvendo um ex-presidente (RIBBEIRO, 2024). Isso marca uma diferença de como foi na ditadura em que houve uma anistia e os responsáveis pelos crimes de Estado dessa época ganharam liberdade, ao invés de serem julgados e condenados. Uma herança da ditadura que precisa acabar é a truculência da polícia às pessoas negras e periféricas, as quais têm o seu destino interrompido semelhantemente a como é representado na cena do filme em que Rubens Paiva é levado pelos policiais, diz que vai voltar, mas não volta para casa. Sobre isso, Oliveira (2020) afirma que há na formação dos policiais militares a construção de um inimigo da nação em torno de estereótipos de pessoas subalternizadas: "Enquanto alguns indivíduos são considerados sujeitos de direitos, outros sequer são vistos como cidadãos". Essa redução do outro a um não cidadão, ou até mesmo a uma não-pessoa é algo que está por trás da legitimação de violências e até mesmo da dificuldade de velar os mortos por conta da estigmatização: "Se trata da perda de uma certa pertinência à comunidade humana, perpetrada pela redução ao bestiário animal, ao fabulante monstruoso ou ao estrangeiro inumano." (DUNKER, 2023, p. 22).
Ainda estou aqui retrata o legado de Rubens Paiva, assim como a sua presença na ausência, a incerteza de onde ele estaria, se estaria vivo ou morto. Algo que gera uma dificuldade em elaborar o luto para a família, já que o Estado brasileiro não havia assumido a sua responsabilidade no ocorrido, menos ainda que Rubens havia falecido. Para dar continuidade à dinâmica familiar Eunice guarda o silêncio, não conta para os filhos mais pequenos que o pai provavelmente faleceu e não voltará mais para casa. Não há rituais para velar a sua partida deste mundo. Não há despedida, não há choro que carrega na água da lágrima a dor e o amor da lembrança de quem um dia esteve aqui, mas não está mais. Porém, Rubens Paiva continua, ele continua na família, continua com Eunice, continua com os filhos, por isso a ideia de que Ainda Estou Aqui. Rubens continua presente pela dificuldade que foi elaborar o luto, mas também pela inspiração de resistência que orientou a sua vida e marcou a sua família.

Ainda estou aqui trata de uma temática sensível, mas poupa o espectador do horror que está por trás da história. A morte é um aspecto da experiência humana que é tratada como sendo obscena em nossa sociedade. Ela diz de uma cena que não cabe no cotidiano do convívio social, pertence ao mundo íntimo e por isso pode ser carregada de vergonha. Obsceno é uma cena que é afastada da aparência invulnerável que muitas vezes queremos demonstrar aos outros. Uma série de fatores faz com que tenhamos vergonha da morte, a morte traz a nossa insuficiência e a insuficiência de quem amamos. Senti falta de uma cena em que Eunice desaba com a morte do marido. Quando ela estava chorando logo após receber a notícia de que Rubens havia falecido entra a sua filha na sala e isso gera uma interrupção do seu choro. Não ter essa cena é um exemplo do fardo que Eunice Paiva teve que carregar para sustentar a família num contexto de silenciamento por conta da ditadura militar. Não falar protege a família, foi isso o que Rubens procurou fazer ao não contar para a esposa sobre os movimentos que fazia para resistir à ditadura. E foi por conta dessa sua ação e de seu histórico como político que foi preso e assassinado. A luta de Eunice é justamente para poder chorar o seu morto, algo que ela consegue só depois de muitas batalhas enfrentadas, em que o Estado brasileiro reconhece o seu crime. Tem uma cena em que Eunice consegue a certidão de óbito do marido e após isso pode olhar para as fotografias que guardam memórias de Rubens Paiva. Da mesma forma, quantas pessoas têm dificuldades em realizar os rituais fúnebres dos seus mortos por conta da falta de reconhecimento de assassinatos realizadas pelo Estado? Achille Mbembe (2016) fala de necropolítica, conceito que se refere à ação do Estado que intencionalmente promove a morte de determinadas populações.
Ainda estou aqui retrata um drama familiar num tempo intempestivo que gera indignação e revolta. Mas o que está nítido para nós, referente ao quão cruel foi esse período, não é algo óbvio para boa parte da população, principalmente a que viveu o período e teve acesso às propagandas que maquiavam o contexto social. Os governos da ditadura militar procuravam ocultar as suas atrocidades, investiu-se em propagandas para passar uma boa imagem na época. Fazer com que o Estado assuma os seus crimes se relaciona com um luto coletivo que Eunice faz parte, daí a importância da certidão de óbito. A luta dela busca pelo reconhecimento da dor afligida aos oprimidos, tanto os oprimidos pela ditadura militar quanto os oprimidos pela colonização, como é o caso dos indígenas que até hoje buscam a demarcação das suas terras. Nos créditos finais do filme há uma passagem na qual relata que quatro agentes de segurança foram acusados, mas não condenados. Na atualidade os militares indiciados pela tentativa de golpe vão ter o mesmo fim ou haverá uma diferença?
Referências:
DUNKER, Christian Ingo Lenz. Lutos finitos e infinitos. São Paulo: Planeta do Brasil, 2023.
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. São Paulo: Cosac Naify (Trad. e Notas Marilene Carone), 2010. (Obra original publicada em 1917).
MBEMBE, Achille. Necropolítica. Revista Arte e Ensaio, Rio de Janeiro, n. 32, 2016.
OLIVEIRA, Caroline. O que está por trás da truculência da Polícia Militar? 2020. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/10/02/o-que-esta-por-tras-da-truculencia-da-policia-militar/. Acesso em: 25/03/2025.
RIBBEIRO, Leonardo. Saiba quem são os militares indiciados pela PF por tentativa de golpe. 2024. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/saiba-quem-sao-os-militares-indiciados-pela-pf-por-tentativa-de-golpe/. Acesso: 25/03/2025.
Jesse Rodriguez Cardoso é psicólogo clínico, mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS), atende presencialmente em Porto Alegre e de forma on-line a brasileiros do mundo todo. Registro no Conselho Regional de Psicologia: 07/33956.
Comments