A Sociedade do Cansaço e seus impactos na Saúde Mental
- Jesse Cardoso
- 21 de fev.
- 8 min de leitura
Atualizado: 30 de mar.

Byung-Chul Han é um filósofo sul-coreano que fez os seus estudos na Alemanha e a partir de lá tece análises a respeito de quais dinâmicas a sociedade aparenta estar se organizando.
Em 2010 escreveu o livro "A sociedade do cansaço", no qual pensa os efeitos do neoliberalismo, da globalização e das novas tecnologias ligadas à internet nas formas que vivemos e nos relacionamos com os outros. Han argumenta que passamos de uma sociedade em que o imperativo era ligado ao "deves fazer", efeito de uma sociedade disciplinar, para o "podes fazer", efeito de uma sociedade de desempenho. Dessa forma, ele nos instiga a pensar no quanto o contemporâneo está dominado por imperativos ligados a desempenho e produtividade, colocando em segundo ou último plano o descanso, o ócio, a contemplação, e demais atividades que não têm uma função utilitária para o capitalismo.
Os discursos neoliberais que produzem a sociedade do cansaço colocam a produtividade acima de tudo, tendo um peso muito grande em atingir o sucesso a partir do esforço pessoal e do pensamento positivo, ignorando questões de limitações pessoais ou mesmo questões relacionadas às desigualdades sociais/econômicas.
O neoliberalismo além de reger práticas estatais tendo a primazia do livre mercado como o que garantiria a liberdade individual para o empreendimento, também afeta de forma intrasubjetiva através da lógica de ser empreendedor de si mesmo. Um dos efeitos dele é que há menos amparo do Estado na garantia dos direitos humanos, e mais incentivo à iniciativa própria, algo que também gera sintomas psicopolíticos de uma alta cobrança interna. Ou, segundo o exemplo trazido por Andrade (2019, p. 220-221) relacionado às políticas assistenciais que exigem o trabalho das pessoas em troca do direito "As novas políticas sociais de workfare promovem um cidadão baseado no interesse egoísta cujo cálculo ultrarresponsabiliza-o por tudo o que ocorre com ele, ao passo que desobriga o Estado da garantia de direitos. O neoliberalismo erode assim a brecha ética entre capitalismo e democracia."
Um dos efeitos dessa mentalidade que só percebe o indivíduo é a exaustão e a depressão. Não é atoa que muitas pessoas reclamam de se sentirem insuficientes e de estarem com sintomas como Síndrome de Burnout, Depressão, Transtorno de Déficit de Atenção, com ou sem, Hiperatividade (TDAH). Os sintomas não dizem respeito só a questões individuais e particulares, eles se articulam com as dinâmicas sociais, com o que é esperado e cobrado por uma sociedade, com o que é entendido como certo e errado, com os afetos que são permitidos e os que não. Como descansar? Tem se tornado uma questão de extrema relevância na sociedade do desempenho.
Byung-Chul Han diz que a sociedade ocidental passou por um período de muita produção ligada a uma vida ativa, mas que depois de a modernidade estar instaurada os sujeitos se tornaram passivos ao se alienarem ao sistema instituído, principalmente na época em que o modelo das escolas, indústrias, igrejas e exércitos era o principal responsável por moldar os cidadãos na sociedade disciplinar. Com o advento da modernidade o trabalho se tornou a fonte de reconhecimento mais amplamente difundida. Reconhecimento é algo que buscamos e traz benefícios como o aumento da nossa autoestima; porém, quando ele se ancora em uma única fonte pode ocasionar problemas em outras áreas da vida, levando, inclusive, ao burnout. Porém, os imperativos sociais do contemporâneo não valorizam isso, mas sim produzir cada vez mais. Algo denunciado pelo autor quando afirma que as pessoas que participam da sociedade "pós-moderna" são ativas demais, tendo como efeito serem hiperativas e hiperneuróticas. Um diagnóstico de Han é que o século XXI é marcado pela prevalência de transtornos mentais. Algo que pode refletir não só que tenha mais adoecimento psíquico, mas que também adoecimentos antes não reconhecidos enquanto tal ganham relevância, ou que são criados em decorrência das novas dinâmicas instituídas de acordo com as tecnologias que permeiam a socialização humana, etc.
Como causa ou como sintoma há uma perda da fé em narrativas homogeneizantes do mundo, ou seja, não há uma narrativa única que ancora a vivência de todas as pessoas que compõem a sociedade pós-estruturalista, ou como diria o autor, pós-moderna. Com a destituição das religiões como as principais provedoras de sentidos da vida e da morte se enfrenta uma vida humana radicalmente transitória. Se lida com uma vida desnuda de fantasias ou perspectivas de eternidade, em que não há promessas de duração e permanência. Segundo o autor, essa dinâmica seria a responsável pelo surgimento de nervosismos e inquietações, ao mesmo tempo que instaura a saúde como a principal "deusa" a ser cultuada. Algo que também é efeito de uma falta de sentido anterior: "Se houvesse um horizonte de sentido que se eleva acima da vida desnuda, a saúde não poderia ser absolutizada nessas proporções" (HAN, 2015, p. 24). Como reação a essa angústia que permeia o desamparo do transitório aparece a hiperatividade, o foco em demasia no trabalho e na produtividade ou mesmo o aceleramento da percepção do tempo.
Mesmo que não tenham as amarras de uma narrativa única de mundo ainda há outros nós que impedem a sociedade do desempenho de ser uma sociedade livre. O que acontece é que as coerções são atualizadas a partir de outras lógicas. Byung-Chul Han (2015, p. 25) afirma "A dialética de senhor e escravo está, não em última instância, para aquela sociedade na qual cada um é livre e que seria capaz também de ter tempo livre para o lazer. Leva ao contrário a uma sociedade do trabalho, na qual o próprio senhor se transformou num escravo do trabalho". Neste caso, o tempo livre que seria utilizado para descanso e lazer acaba enroscado com o trabalho. Ou mesmo pessoas que no seu tempo livre ao invés de se dedicarem ao descanso ou lazer acabam trabalhando em outros trabalhos, como forma de conseguir complementar a renda já precária perante uma sociedade que carrega um custo de vida muito alto comparado com os salários recebidos.
Na sociedade disciplinar a coerção vinha de fora, na sociedade do desempenho e do cansaço a coerção vem de dentro. E isso pode ganhar um tom assustador se pensarmos que a coerção de dentro, muitas vezes, pode ser pior do que a de fora. Já segundo Freud (1923/2011), o Super Ego é a instância da lei interna de cada um de nós, o qual funciona como consciência moral e carrega um sentimento inconsciente de culpa. Numa sociedade do desempenho ele pode se tornar extremamente cruel e rígido. Dessa forma, mesmo não tendo alguém vigiando de fora, carregamos um campo de trabalho interno em que somos ao mesmo tempo prisioneiros e vigias, vítimas e agressores, em outras palavras, os exploradores de nós mesmos.
Como descansar e revitalizar?
Algo que traria uma possibilidade de descanso para muitas pessoas seria termos uma sociedade regida pela garantia dos direitos humanos e trabalhistas, salários bem pagos, menos inflação e desigualdades sociais. Como vivemos numa sociedade que vivenciou um longo processo de colonização e escravização (atualizado pelo capitalismo), há ainda muitas desigualdades e injustiças a serem corrigidas. Mas além disso, vou trazer junto com o autor algumas possibilidades particulares que podem ser feitas para combater os efeitos nocivos dessa sociedade do cansaço.
Han sugere que a capacidade de contemplação, reflexão e ócio são ingredientes essenciais para tratar os malefícios da produtividade em excesso. Segundo o autor, uma inimiga da contemplação é a hiperatividade, essa forma de funcionamento que não desacelera a atenção e fica sujeita ao raso. A capacidade de contemplação está ligada a uma atenção profunda, a perceber o oscilante, ao que está além do mais evidente e que só é captado se há abertura e atenção para isso. Ou seja, demanda um não preenchimento e uma contemplação a aspectos interiores e exteriores que carregam um ritmo diferente do da rotina e que podem fazer parte de um longo processo inconsciente até então: "Só o demorar-se contemplativo tem acesso também ao longo fôlego, ao lento" (HAN, 2015, p. 20). A contemplação é um momento para sair de si mesmo, é um momento para mergulhar no mundo e sair das águas rasas.
Numa sociedade que nos empurra para a hiperatividade, uma saída é aprender a não reagir imediatamente aos estímulos sensoriais, a dar um tempo para refletir a respeito de qual é a melhor resposta para cada problemática que aparece. Para permitir esse tempo de reflexão é importante treinar o dizer não ao que não é importante em cada situação, dessa forma se possibilita exercer uma soberania da vontade. Porém, não quer dizer que vai ser fácil. O que se quer? O que se deseja? Parece que há uma dificuldade em responder essas perguntas na sociedade do desempenho. Para encontrar respostas a elas é possível através de um mergulho lento e profundo em si mesmo, algo que entra em choque com a aceleração da internet e das redes sociais, onde aparecem muitos modelos do que seria o desejável ou do que traria a felicidade. Esse tempo de reflexão quando se trata de olhar para o interior permite conhecer mais as vontades que estão subterrâneas, os sentimentos que não estão tendo espaço para se expressarem. Dizer não, fazer escolhas, também é perder, e hoje em dia há um imperativo e um sintoma de que não devemos perder nada, FOMO (Fear of missing out) é o medo de perder algo que está acontecendo, de ficar por fora. Mas em alguns momentos perder é ganhar, quando se trata de focar é dessa forma, se perde a atenção a algumas coisas que não fazem sentido no momento, e se foca nas que fazem.
Uma vida sem interrupções é uma vida autocentrada, se conectar com o outro demanda uma interrupção do que não cessa no interior. É isso o que possibilita a escuta, por exemplo. Já na terapia a escuta se dá de outra forma. Uma escuta psicanalítica traz à tona não só aspectos cotidianos, mas também aspectos ocultos no inconsciente e que tecem uma narrativa poética do que faz parte do desejo dos analisandos/pacientes. A clínica psicanalítica busca filtrar o que tem de mais valioso no discurso dos analisandos, Freud (2021) faz uma analogia com o trabalho de um garimpeiro que busca por ouro em meio a uma imensidão de material bruto. Fazer análise pode ser uma boa forma de encontrar ou reencontrar os sentidos para a vida. Através da associação livre vai se falando tudo o que vier à cabeça, e dessa forma o inconsciente vai se expressando poeticamente, expressão que conta com a ajuda do analista para interpretá-lo.
Outro problema ligado à positividade em demasia é que ela não respeita processos psicológicos importantes como o luto de um ente querido. Parece que não há espaço para a angústia de quem está enlutado numa sociedade do desempenho. Não há espaço para uma interrupção da produtividade visando acessar a tristeza que faz parte do processo de elaboração do luto. O luto não é uma patologia, é um processo natural do ser humano. Quando se está de luto descansar e revitalizar também é guardar um tempo para acessar as memórias de quem se foi e honrar o passado da forma que for possível.
Às vezes liberdade é poder dizer não. O autor traz o exemplo da meditação zen como uma prática que busca alcançar a capacidade de dizer não e a capacidade de parar. Diz que ela tenta alcançar o vazio, libertando-se do que não é importante, permitindo que o fluxo interior não fique apegado a algumas dores, pensamentos, sentimentos que estão cristalizados e travam a continuidade do rio interno. A meditação zen é um exercício ativo que busca encontrar pontos de soberania, pontos que colocam o sujeito no centro de si mesmo, atingindo assim a liberdade interior.
Para finalizar, deixo algumas questões relacionadas a quem pode parar nesse sistema capitalista que explora cada vez mais os trabalhadores, desta vez com o discurso internalizado de que eles são os seus próprios patrões, mesmo estando a serviço de empresas via aplicativo. Ou mesmo, como podemos possibilitar espaços de interrupção do cotidiano para um maior contato conosco mesmo e com os outros no nosso dia a dia?
Referências:
ANDRADE, Daniel Pereira. O que é o neoliberalismo? A renovação do debate nas ciências sociais. Revista Sociedade e Estado – Volume 34, Número 1, Janeiro/Abril 2019.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2015.
FREUD, Sigmund. Obras completas, Vol. 16: O Eu e o ID, "autobiografia" e outros textos [1923-1925]. Tradução de Paulo César Lima de Souza. Editora: Companhia das Letras, 2011.
FREUD, Sigmund. Fundamentos da clínica psicanalítica. Tradução de CLaudia Dornbusch. 2. ed.; 4 reimp. - Belo Horizonte: Autêntica, 2021. (Obras Incompletas de Sigmund Freud; 6).
Jesse Rodriguez Cardoso é psicólogo clínico, mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS), atende presencialmente em Porto Alegre e de forma on-line a brasileiros do mundo todo. CRP 07/33956.
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